2008

Direitos (e) humanos no Brasil contemporâneo

Vera Malaguti Batista

Abstract

Os modelos de Estado que prevalecem no Brasil a partir do período pós-colonial até os dias atuais são marcados pela herança jurídico-penal da inquisição ibérica. Nesta herança emerge a contraposição entre o dogmatismo legal e o pluralismo jurídico, a criminalização do outro, a coerção como meio de alcançar o consenso, a manipulação dos sentimentos suscitados pelos ritos judiciários. O discurso do direito penal, com a sua pretensa legitimidade, gera continuamente sentidos e percepções funcionais de expansão do sistema penal também em direção à mentalidade e à vida privada. Este artigo procura revelar os sentidos históricos desta continuidade ideológico-penalista no Brasil, além de denunciar as ligações com a vontade política de impor uma ordem social desigual e hierarquizada, baseada em modelos de produção e de desenvolvimento econômico que necessariamente excluem grandes parcelas do competente mais popular da sociedade brasileira e que exige um controle rigoroso, criminalizante e neutralizador destas massas excluídas. Diante do atual fenômeno de encarceramento de massa no Brasil, principalmente dos jovens de periferias populares, a autora se pergunta qual deveria ser o papel da criminologia, se é que esta deva servir, como parece ter acontecido tantas vezes na história do pais, à manutenção das relações hegemônicas autoritárias, ou se esta pode servir como barreira utópica contra o atual capitalismo selvagem. A reflexão sobre a questão criminal representa hoje, para a autora, a principal linha de luta para os direitos humanos.

Pensar a América Latina como gigantesca instituição de seqüestro é o centro de reflexão do jurista e intelectual argentino Raúl Zaffaroni. (1) Ele denuncia a situação crítica do sistema penal no continente com um discurso jurídico-penal esgotado em seu arsenal de ficções gastas, cujos órgãos exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa (realidade letal). Ele descreve o sistema de controle social da América Latina como produto da transculturação protagonizada pela incorporação ao processo de acumulação de capital. Darcy Ribeiro denominava os ciclos econômicos, a partir da colonização, como moinhos de gastar gente: índios, africanos, pobres em geral. (2) O marco dessa transculturação tem sido o genocídio.

Trabalhando a idéia de direitos a partir do iluminismo, tentemos pensá-la na realidade histórica do Brasil. O período pós-emancipação no Brasil é marcado por profundas inquietações. A independência inspirava vários projetos para a nação que lutavam por hegemonia. A principal questão a ser administrada, ideológica e politicamente, era a convivência do liberalismo com o modo de produção escravista.

Para entender esta conjuntura, os problemas do liberalismo no Brasil (3), gostaríamos de refletir sobre o que Gizlene Neder denominou "iluminismo jurídico-penal luso brasileiro". (4) A autora trabalha as transformações do Brasil colônia em Império Luso-Brasileiro, a partir das reformas pombalinas em Portugal na passagem do século XVIII para o XIX. Compreendendo que os atores no poder eram bacharéis, ela trabalha a influência da reforma da Universidade de Coimbra em 1772 e a criação dos cursos jurídicos no Brasil em 1827.

A idéia central de sua tese está baseada nas permanências histórico-culturais de uma maneira de incorporar o liberalismo europeu sem rupturas com o tomismo, o militarismo e a religiosidade de nossas matrizes ibéricas. Assim, busca-se sempre uma fórmula jurídica-ideológica que assimile uma hierarquização absolutista, que preserve as estratégias de suspeição e culpa do direito canônico e que mantenha vivos o arbítrio e as fantasias absolutistas de controle total.

A herança jurídico-penal da inquisição ibérica é uma das marcas de um modelo de Estado que vinca a história do Brasil até os dias de hoje. "O discurso do direito penal, que tem a pretensão de exercer-se como locução legítima, numa língua oficial, está permanentemente produzindo sentidos que viabilizem a expansão do sistema penal, expansão que também se orienta na direção das mentalidades e da vida privada". (5)

Nesta herança, o dogmatismo legal se contrapõe ao pluralismo jurídico, o diferente é criminalizado, há uma coercitividade do consenso e uma manipulação dos sentimentos ativados pelo episódio judicial. (6) Para Batista, esses mecanismos sobrevivem e se agudizam em determinadas conjunturas políticas, reproduzindo o tratamento dispensado ao herege: o princípio da oposição entre uma ordem jurídica virtuosa e o caos infracional; a matriz do combate ao crime é feita como cruzada, com o extermínio como método contra o injusto que ameaça; é produzido um direito penal de intervenção moral baseado na confissão oral e no dogma da pena. Essa ordem jurídica intolerante e excludente não tolera limites, transforma-se num sistema penal sem fronteiras, com a tortura como princípio, o elogio da delação e a execução como espetáculo.

É importante trabalhar as permanências histórico-culturais das fantasias de controle total do absolutismo português que desembocam em práticas pedagógicas, jurídicas e religiosas que inculcam uma determinada visão sobre direitos, disciplina e ordem. (7) Estas permanências produzem, para Neder, implicações jurídicas, políticas e ideológicas de uma visão social teológica, aristocrática e rigidamente hierarquizada com uma performatividade política e alegórica que impregna a vida cotidiana do Brasil. Como em Portugal, as elites brasileiras incorporam pragmaticamente alguns aspectos da modernidade mas garantindo permanências do autoritarismo absolutista. O legado do período colonial mercantilista trazia para o Império Brasileiro o controle social penal "realizado dentro da unidade de produção" (8) num "poder punitivo que se exerce sobre o corpo de sua clientela". (9)

Seria importante, antes de passarmos à análise da construção do aparato de controle social na conjuntura referida, enquadrarmos o que Neder denominou "visões hiperbólicas sobre as classes perigosas" (10) no período de formação de um ser político muito particular, a classe senhorial brasileira, na hegemonia do paternalismo e das "políticas de domínio baseadas na imagem da inviolabilidade de uma vontade senhorial benevolente que permanece praticamente inconteste como meio de preservar a subordinação de escravos e trabalhadores livres dependentes". (11) O personagem machadiano a que Chalhoub se refere, Brás, se imagina como "controlador de uma economia de concessões e favores, rodeado por uma legião de escravos e outros criados". Para Brás, a eliminação das diferenças políticas e culturais se relacionam a uma certa ordem e a um certo equilíbrio. No mundo senhorial, tudo e todos existem para satisfazer a sua vontade. Brás é, assim consciente das dimensões simbólicas do poder, foi criado "in the art of performing power", naquilo que Schwarz denominou de "cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma". (12) Helena Bocayuva analisa em Gilberto Freyre a concepção do patriarcalismo como ordenador da sociedade brasileira. Ela trabalha o poder de classe do menino de engenho e seus "mórbidos deleites"ou brincadeiras sempre verticais, hierarquizadas. (13)

Márcia de Almeida Gonçalves trabalhou o medo como "preciosa chave de leitura" para a compreensão da conservação e expansão dos monopólios fundadores dos interesses da classe senhorial. (14) Ela aponta a compreensão do medo como virtude e de como esta relação se encontrou no eixo central das estratégias conservadoras no período (15). Era com esta idéia que se conciliava progresso e conservação, dentro daquela visão de Schwarz de um liberalismo que não se podia praticar, sendo ao mesmo tempo indescartável. A manutenção das relações escravistas, a concentração da propriedade da terra e a consolidação da unidade imperial eram os dilemas dos liberais na década de 30 do século XIX.

No processo que intitulam de história da programação criminalizante no Brasil, Batista e Zaffaroni mostram como os usos punitivos do mercantilismo praticados no corpo do suspeito ou condenado no âmbito privado vão dando sinais de anacronismo depois da independência e na constituição do capitalismo no Brasil. As permanências, no entanto, são muitas: "a alçada criminal abrangia a pena de morte natural inclusive em escravos, gentios e peões homens livres, sem apelação nem agravo, salvo quanto às pessoas de mor qualidade, quando se restringiria a degredo por dez anos e multa até cem cruzados". (16) Eles citam Gilberto Freyre que estuda, nos anúncios sobre escravos na imprensa do século XIX, a sobrevivência das práticas de marcar o rosto dos escravos com fogo ou lacre ardente. Cicatrizes de açoites e de ferro quente, dentes limados, feridas e queimaduras na barriga pontuam os classificados de gente daqueles tempos.

Do ponto de vista jurídico, do império das leis, as Ordenações Filipinas, que constituíram o eixo da programação criminalizante do Brasil-colônia, regeram o direito penal até a promulgação do código criminal de 1830. É importante frisar que no direito privado várias disposições das Ordenações Filipinas regeram até 1917! (17) No marco da "questão do poder e da disciplina sobre a família, instituição-chave no leque das práticas de controle e disciplinamento social, na passagem à modernidade" (18), Neder e Cerqueira Filho estão trabalhando a idéia da "construção de um arcabouço ideológico e afetivo de sustentação da função parental repousada numa autoridade capaz de substituir esta figura tão abrangente do paterfamilias". (19)

Já nos referimos anteriormente às marcas da Inquisição e suas devassas gerais sobre delitos incertos (20) que até hoje pontuam os noticiários sobre crime no Brasil e também os corações e mentes da direita e da esquerda punitiva. (21) As demandas por ferocidade penal, a seletividade da clientela do sistema penal são permanências históricas. Mas, a partir das contradições que surgem entre o sistema colonial-mercantilista e o capitalismo industrial que se configurava já na segunda metade do século XVIII, vai-se esboçando uma outra conjuntura. No bojo da Independência, a Constituição de 1824 produz algumas rupturas, ma non troppo, que fazem parte do universo liberal no conjunto das idéias fora do lugar da modernização à brasileira. Surgem as tais garantias individuais: "liberdade de manifestação do pensamento, proscrição de perseguições religiosas, a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal, o devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado". (22) É lógico que tudo isto não poderia colidir com o "direito de propriedade em toda a sua plenitude" que, mantida a escravidão na letra da lei, instituiria a cilada da cidadania no Brasil, digamos a ciladania, que pontua até hoje os discursos do liberalismo da direita à terceira via no Brasil.

É neste marco de referência que o Código Criminal do Império de 1830 é promulgado, na esteira do medo das insurreições, nas expectativas de que à nação independente de 1822 sobreviessem os direitos plenos de seu povo mestiço, nas contradições entre liberalismo e escravidão, na necessidade de unificação territorial e centralização dos poderes imperiais.

Para Batista e Zaffaroni, a legalidade que deveria acontecer, pela Constituição de 1824 e pelo artigo 1º do Código Criminal, não se deu. Na esteira do medo branco das insurreições escravas, em 1835 é editada uma lei cominando pena de morte para qualquer ofensa física de escravo contra o senhor, o feitor ou seus familiares. "A conturbada década de 30 resulta no retrocesso processual de 1841-1842, que transfere para a polícia poderes da magistratura". (23) A lei nº 9 de 13 de maio de 1835, da Assembléia Legislativa da Bahia, previa que africanos libertos que regressassem à província, depois de expulsos, fossem processados por insurreição. "Tal lei - elaborada sob a influência da recente revolta malê - promovia aí uma equiparação monstruosa, e em seu artigo 21 elevava as penas estabelecidas por um decreto imperial; em ambos os casos, o princípio da reserva legal virava pó". (24)

A circulação e movimentação dos escravos e pretos forros era punível (Batista e Zaffaroni nos falam de uma postura municipal de 1870 que punia com multa ou 4 dias de prisão os donos de tendas, botequins ou tavernas que "permitissem em seus estabelecimentos a demora de escravos por mais tempo que o necessário para as compras, com a cláusula respondendo sempre os amos pelos caixeiros" (25)). Aqueles passaportes descritos no decreto de 14 de dezembro de 1830, na Bahia, têm longa duração e irão inspirar as fronteiras erigidas entre a ordem e a desordem disciplinando o deslocamento e a sociabilidade urbana na virada do XIX para o XX, e até os dias de hoje. (26) Os lundus, batuques e algazarras também seriam punidos com prisão. Em 1861 um aviso ministerial preconiza a graduação dos açoites "conforme a idade e robustez do réu"; alugar uma casa a escravos dava 8 dias de prisão. Para Batista e Zaffaroni, é nessa conjuntura histórica que se enraízam as matrizes do autoritarismo policial e do vigilantismo brasileiro, do sentido histórico da crueldade de um conjunto de leis liberais que permitiam "o retorno ao poder de uma senhora, de uma escrava achada com a língua cosida com o lábio inferior". (27)

No liberalismo à brasileira, a pena de morte tem "escabrosa facilitação processual para réus escravos que compete com a invulnerabilidade a ela dos senhores". (28) Nas palavras de Batista, nosso segundo sistema penal, na sua grosseira corporalidade, expunha ambigüidades fundamentais. "O escravo era coisa perante a totalidade do ordenamento jurídico (seu seqüestro correspondia a um furto), mas era pessoa perante o direito penal". (29) Mas, mesmo com suas ciladas e ambigüidades, o Código Criminal do Império influenciou muitas legislações latino-americanas e mais diretamente o código penal espanhol de 1848. (30)

Este conteúdo autoritário, legitimador do extermínio e condutor desta realidade letal que renega os direitos no momento em que os institui vai ser uma permanência histórica. Nilo Batista examinou as origens históricas do discurso do direito penal da intervenção moral, que conduz a políticas criminais de conteúdo exterminador: "o operador judiciário é um agricultor previdente, cuja enxada deve extirpar a má semente ou matar a víbora; ou é cirurgião diligente, que deve amputar o membro apodrecido para evitar a infecção; pragas no campo e epidemias nas cidades resultarão de qualquer transigência com os inimigos da ordem virtuosa". (31)

Compreendendo essas permanências históricas, podemos realizar um deslizamento no tempo. Na transição da ditadura para a "democracia" (1978-1988), com o deslocamento do inimigo interno para o criminoso comum, com o auxílio luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta a estrutura de controle social, com mais e mais investimentos na "luta contra o crime". E, o que é pior, com as campanhas maciças de pânico social, permitiu-se um avanço sem precedentes na internalização do autoritarismo. Podemos afirmar sem medo de errar que a ideologia do extermínio é hoje muito mais massiva e introjetada do que nos anos da ditadura. Os "intervalos democráticos" da nossa história do presente revelam os artifícios de manutenção de uma ordem desigual e hierarquizada.

Cabe a nós, que pensamos a questão criminal contemporânea, entender as novas funções da prisão e do poder punitivo no neoliberalismo, ou capitalismo de barbárie. A esse respeito, Loïc Wacquant propõe a idéia do paradigma norte-americano de incremento do Estado Penal em contraposição à dissolução do Estado Previdenciário: a nova gestão da miséria se daria pela criminalização da pobreza, nos discursos e nas práticas. (32) A hegemonia deste modelo produziu o que Wacquant denomina de onda punitiva, produzindo um processo de encarceramento em massa nunca visto na história da humanidade.

Mas o encarceramento dos indesejáveis (sempre os latino-americanos, africanos e asiáticos, os pobres do mundo) nos remete a uma discussão mais conceitual sobre a constituição da nova classe trabalhadora, mcdonaldizada, flexibilizada, precarizada, sem redes coletivas de segurança e, principalmente, em excesso. Enfim, a mão-de-obra do mundo pós-industrial, sem consciência de si, é por isso objeto de um projeto atuarial pelo poder hegemônico e vista com desdém pela esquerda punitiva e seus preconceitos históricos sobre o lumpesinato. (33)

O certo é que este colossal processo de encarceramento e seus dispositivos produziram uma nova economia prisional, um sistema de controle social do tempo livre, lucrativo agora não pela apropriação do trabalho dos presos, mas pela privatização da sua administração e pela indústria do controle social do crime: um dos maiores recrutadores hoje de mão-de-obra desqualificada são os serviços de segurança. O papel da mídia é fundamental para a construção desses dispositivos, seja pela legitimação moralizadora da criminalização da conflitividade social, seja pela venda descarada do modelo Guantánamo de empreendimento prisional. O Brasil tem sido um laboratório de experiências nesse sentido, concretizando no dia-a-dia a ideologia da "segurança máxima" e dos princípios das penas excessivas e da incomunicabilidade.

Tudo isso se acelera no Brasil a partir dos anos 80 com a entrada do modelo neoliberal e os paradoxos do momento de transição da ditadura. O marco jurídico avançado convivia com as armadilhas autoritárias como a lei de crimes hediondos que, junto ao processo de criminalização da pobreza, criou uma massa carcerária sem perspectiva de saída ou progressão de regime. A política criminal de drogas imposta pelos Estados Unidos, como a econômica, é o maior vetor de criminalização seletiva nas periferias brasileiras: a prisão parece ser o principal projeto para a juventude popular. (34)

Essa ampliação do poder punitivo no marco legal e o acirramento de uma conflitividade social despolitizada gerou o nosso aterrador sistema penal. Em 1994 o Brasil tinha cerca de 110.000 presos, hoje são mais de 400.000. Só em São Paulo são cerca de 140.000 presos distribuídos por 144 unidades. A todo mês são 700 novos presos no sistema apenas no estado de São Paulo. Até os que acreditam nas "ideologias ressocializadoras" terão que se dar conta de uma situação inadministrável. O modelo Guantánamo das supermax americanas se acopla às condições Carandiru de cárceres apinhados de pobres, sem acesso a defesa e cada vez mais afastados de seus laços sociais e afetivos pela nova cultura punitiva do emparedamento em vida.

A criminologia crítica foi um dique utópico contra as violências dos ciclos militares nos anos 70 na América Latina. (35) A pergunta que nos fazemos é para que serve a criminologia no Brasil no momento histórica do encarceramento em massa? Devemos servir à manutenção da ordem do capitalismo de barbárie ou servir de dique utópico contra essa ordem?

O dilema da sociologia contemporânea cabe dentro dessa discussão. A criminologia teria deixado de produzir uma alternativa concreta ou a alternativa concreta seria não reproduzir as racionalidades, programas e tecnologias governamentais da questão penal? Joel Rufino dos Santos, em debate pela imprensa, afirmou que a crítica de que a "esquerda" não tem projeto de segurança pública é equivocada. A esquerda, os que se identificam com o povo brasileiro, tem é que defender os pobres e os resistentes das dores e privações de um poder punitivo que quanto mais atualiza historicamente suas racionalidades, mais sofrimento e dor em massa promove nas suas margens.

Vinte anos mais tarde, Raúl Zaffaroni propõe um replanteo epistemológico na criminologia a partir do livro do professor neozelandês Wayne Morrison. (36) O livro apontaria uma contribuição das ciências sociais sobre o debate entre os penalistas da Europa e da América Latina sobre o inimigo no direito penal. (37) A partir da compreensão cabal da vitória, a nível global, do liberalismo desencantado, da modernidade "democrática", Zaffaroni e Morrison colocam em questão a criminologia "global", que não pode deixar de discutir o genocídio: do não-civilizado ameaçador de Hobbes à coerção sobre o incivilizado ameaçador de Kant.

Na resenha do livro de Morrison, cujas pegadas seguimos agora, Zaffaroni destaca a importância do 11 de setembro, não pelo número de vítimas, mas pela invasão do espaço civilizado pelo não-civilizado, o que produziu novos medos para o curso dos discursos. O período Bush aprofundou, a partir dos novos temores, a simbiose entre os discursos da guerra e do crime. Ele aponta como os áulicos do fim da história ecoavam na criminologia, desistoricizada e burocratizada, pronta para dar eficiência e efetividade ao controle social do capitalismo de barbárie. Aparece um novo sentido, mais emocional, mais "popularizado" e politizado através de uma nova relação com os meios de comunicação.

Mas a verdade é que surge na América Latina o fenômeno do "populismo punitivo". Sozzo analisa a maneira como a maior presença cotidiana de delitos começa a ser compreendida de uma outra forma: a insegurança urbana vira "objeto de intercâmbio político, de mercadoria política". (38) Esta eleitoralização da emergência produziu um mercado de trocas simbólicas, de novos agentes e especialistas que vão dar novos sentidos para produzir consensos e controles sobre as subjetividades diante do fato criminal. David Garland fala da "criminologia do outro" (39), construindo sólidas fronteiras entre nós e os outros. Já nos debruçamos na análise da maneira como no Brasil, e mais especificamente no Rio de Janeiro, o medo foi o fio condutor legitimante das permanências de uma estética da escravidão. (40) Uma das características do populismo punitivo seria o apagamento de uma reflexão criminológica acadêmica para o surgimento de um novo especialista: a vítima. Se na Argentina aparece um pai "vítima" na cena política, com possibilidade de ser candidato a Presidente, no Brasil serão os pais e mães das vítimas (brancas, é claro) que darão o tom do debate criminológico e da mudança das leis penais no sentido de maior "rigor". Essa emocionalidade é estratégica para o processo de expansão de poder punitivo no mundo contemporâneo.

Voltando ao replanteo de Zaffaroni nas margens neozelandesas de Morrison, chega-se à visão da criminologia como um discurso extremamente parcial, "construído em torno de um mundo de fatos politicamente delimitado". (41) Ele cita Dickens ao referir-se à Austrália sem levar em consideração os povos que ali viviam há 40.000 anos. Seres que não contam.

A criminologia lida com essas características seletivas e Zaffaroni e Morrison demonstram como o belga Quetelet, célebre estatístico, construiu o conceito de homem médio, que iria empurrar para as margens várias categorias. O terceiro capítulo do livro de Morrison tem o título emblemático de "Estatística criminal, soberania e controle da morte: de Quetelet a Auschwitz". Propõe-se então, a ampliação do conceito de genocídio para abarcar os crimes massivos de Estado cuja exclusão jurídica só faz sentido na racionalização perversa do extermínio "dos que não contam". Só no Rio de Janeiro foram mortos mais de 30.000 jovens nos últimos dez anos. Mas a principal conclusão é a de que o universo criminológico lida o tempo todo com uma "parcialização arbitrária", seria como "uma ciência da realidade que passa indiferente a muitos milhões de cadáveres". (42)

A explicação para a impossibilidade do direito e da criminologia incorporarem o genocídio seria pela sua estreita vinculação com o imperialismo: é só fazer a contagem de corpos da "democratização" do Iraque. As vítimas européias e americanas são vítimas, os iraquianos e afegãos são "danos colaterais". "O genocídio não pode entrar na criminologia, porque está sendo cometido pelos poderes hoje dominantes". (43) Este seria o nó metodológico na criminologia, reconhecer a seletividade arbitrária e "sepultar definitivamente a ilusão de ciência": Zaffaroni propõe a passagem da assepsia à crítica ideológica.

Retomando as suas aproximações de uma margem, Zaffaroni apresenta a criminologia tradicional latino-americana como um saber colonial e racista constitutivo do nosso "apartheid criminológico". Podemos pensar, então, se "está empiricamente verificado que nenhum crime de Estado é cometido sem ensaiar ou apoiar-se em um discurso justificante" (44), que a matança em curso no Brasil neoliberal se sustenta em uma criminologia funcionalista e acrítica, que pretende reordenar, eficientizar o controle social letal legitimando a expansão da barbárie, que se traduz no emparedamento em vida e no aniquilamento de milhares de jovens brasileiros. Este processo, que analisamos como filicídio, apresenta um número cada vez maior de crianças e adolescentes presentes nos dois lados das estatísticas criminais no Brasil, como autores e como vítimas. A tragicidade da violência cotidiana no Brasil aparece nas duas pontas da questão criminal: o problema é que as criminologias "politicamente corretas", em conjunto com o populismo punitivo, vão disparar o velho dispositivo positivista, agora reciclado nas neurociências, contra o setor mais vulnerabilizado pela economia de mercado, a clientela histórica dos nossos sistemas penais. Podemos afirmar, então, que a questão criminal é hoje a principal trincheira da luta pelos direitos humanos.


Notas

1. E.R. ZAFFARONI, Em busca das penas perdidas, Rio de Janeiro, Revan, 1991. p. 13.

2. D. RIBEIRO, O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhias das Letras, 1995.

3. Robert Schwarz analisando Machado de Assis trabalha o liberalismo no Brasil como as "idéias fora do lugar".

4. G. NEDER, Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2000.

5. N. BATISTA, "Os sistemas penais brasileiros", in ANDRADE, Vera Regina P. de (Org.), Verso e Reverso do Controle Penal: (Des) Aprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva, v. I., Florianópolis, Fund. Boiteux, 2002.

6. N. BATISTA, Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro, vol. I, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2000.

7. Cf. G. NEDER, Op. cit.

8. G. NEDER, Op. cit., p. 182

9. N. BATISTA, Os sistemas penais brasileiros, cit., p. 149.

10. G. NEDER, "Cidade, identidade e exclusão social", in Revista Tempo, 2 (1997), 3.

11. S. CHALHOUB, "What ane noses for? Paternalism, social darwinism an race science in Machado de Assis", in Journal of Latin American Cultural Studies, 10 (2001), 2, p. 172.

12. R. SCHWARZ, Op. cit., p. 19.

13. H. BOCAYUVA, Erotismo à brasileira: o excesso sexual na obra de Gilberto Freyre, Rio de Janeiro, Garamond, 2001.

14. M. A. GONÇALVES, Ânimos temoratos: uma leitura dos medos sociais na corte no tempo das regências, Tese de mestrado em História, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 1995.

15. É interessante notar que, quase dois séculos depois, a idéia do medo como virtude é funcional para outros eixos de estratégias conservadoras. O livro de Gavin Becker (Virtudes do medo: sinais de alerta que nos protegem da violência. Rio de Janeiro, Rocco, 1999) trata o medo como dom, fala de uma academia de previsão desenvolvida por psicólogos naturais, narra o "impressionante insight comportamental" de um agente do FBI e demonstra que, na inteligência do medo "é melhor ser procurado pela polícia do que não ser procurado por ninguém".

16. Cf. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, Direito Penal Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Revan, 2003.

17. Cf. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit.

18. G. NEDER, G. CERQUEIRA FILHO, "Os filhos da lei", in Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16 (2001), 45, p. 113.

19. Op. cit. ult., p. 124.

20. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit.

21. Cf. M.L. KARAM, "A esquerda punitiva", in Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, 1 (1996), 1.

22. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit., p. 39.

23. N. BATISTA, Os sistemas penais brasileiros, cit., p. 152.

24. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit., p. 41.

25. Cf. Batista e Zaffaroni sobre a legislação da Província da Bahia.

26. G. NEDER, Cidade, identidade e exclusão social, cit.

27. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit., p. 42.

28. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit., p. 53.

29. N. BATISTA, Os sistemas penais brasileiros, cit., p. 13.

30. N. BATISTA, E.R. ZAFFARONI, op. cit., p. 53.

31. N. BATISTA, Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro - I, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminoligia/Revan, 2002. p. 240.

32. L. WACQUANT, Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2003.

33. Sobre essa discussão conferir o prefácio de Dario Melossi no livro de Alessandro De Giorgi, A miséria governada através do sistema penal, Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2006.

34. N. BATISTA, V. MALAGUTI, Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, 2 ed., Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2003.

35. A expressão "dique utópico" é de Marildo Menegat.

36. E.R. ZAFFARONI, Un replanteo epistemológico en criminologia (a propósito del libro de Wayne Morrison), Buenos Aires, MIMEO, 2007. (Cf. W. MORRISON, Criminology, civilization and the new world order, Routledge-Cavendish, Oxon, 2006).

37. E.R. ZAFFARONI, O Inimigo no Direito Penal, Rio de Janeiro, Revan, 2007.

38. M. SOZZO, ¿Metamorfosis de la prisión? Populismo punitivo, proyecto normalizador y "prisión-depósito" en Argentina, Buenos Aires, MIMEO, 2007.

39. Sozzo cita a edição espanhola do livro de Garland, La cultura del control, Barcelona, Gedisa, 2005.

40. Cf. N. BATISTA, V. MALAGUTI, O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, Rio de Janeiro, Revan, 2003.

41. E.R. ZAFFARONI, Un replanteo epistemológico en criminologia (a propósito del libro de Wayne Morrison), cit., p. 5.

42. E.R. ZAFFARONI, op. cit., p. 6.

43. Ibid., p. 15.

44. Ibid., p. 16.