2010

Cárcere e democracia no Brasil
Notas para um debate

Adriana Dias Vieira

Resumo

Este artigo se propõe a analisar as relações entre o cárcere e a democracia brasileira, observando as peculiaridades que circundam o aumento vertiginoso da população penitenciária, trazendo, como pano de fundo, uma reflexão sobre função do cárcere na democracia brasileira atual. Para tanto, trabalha com a hipótese de que a implementação de uma política criminal voltada para a criminalização da droga, quase que sob o argumento de uma "guerra à droga", modificou significativamente a composição da população penitenciária, e potencializou a violência urbana, acirrando significativamente a relação entre direito e ordem. Tomam-se, como ponto de partida e referência de análise, as reflexões de Norberto Bobbio sobre a democracia, os trabalhos de Emilio Santoro e Loic Wacquant sobre o encarceramento em massa, bem como os dados oficiais do Ministério da Justiça sobre o sistema penitenciário e os indicadores sociais fabricados pelas Nações Unidas e pelo IBGE sobre a população brasileira atual.

1. Introdução

Nos últimos vinte anos, o Brasil vive um processo particularmente importante de consolidação da democracia constitucional, cujo marco legal é a Constituição Federal de 1988 que inaugura, pelo menos do ponto de vista jurídico, uma ampliação do leque dos direitos fundamentais. Entretanto, neste mesmo período, verifica-se o acirramento da relação entre a lei e a ordem, com um recrudescimento das políticas penais e um aumento significativo da percepção da violência urbana no Brasil.

No que diz respeito ao sistema penitenciário brasileiro, dados oficiais do Estado mostram que a população penitenciária no Brasil, nos últimos vinte anos, quase quadruplicou (1). Em 1992, o Brasil tinha 114.377 presos, dos quais quase 40% presos provisórios, ou seja, aqueles que aguardam a sentença judicial sob custódia do Estado. Em junho de 2009, a população penitenciária brasileira cresceu e chegou a 469.546 presos. Em 1992, em relação à população brasileira, a taxa de encarceramento era de 74 presos, em função de 100.000 habitantes. Em junho de 2009, a taxa de encarceramento subiu para 247 e o número de presos provisórios subiu para 150.000 pessoas, o que equivale a 42% das pessoas presas.

Longe de ser um fenômeno isolado, a partir da década de oitenta do séc. XX, verifica-se o aumento do número de pessoas encarceradas em quase todos os Estados ocidentais modernos, e este fenômeno, conhecido como fenômeno do encarceramento em massa, tem consequências que constituem verdadeiros desafios às democracias ocidentais.

2. Democracia, desigualdade e pobreza

A democracia, dentro da tipologia das formas de governo, designa "a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo" (2) e, na acepção moderna do termo, a noção de democracia está ligada à formação dos Estados modernos, e, consequentemente, à noção de Estado de Direito que, para Bobbio "significa querer que as instituições políticas e os aparelhos jurídicos tenham rigorosamente por finalidade a garantia dos direitos subjetivos" (3).

O estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do estado democrático. Estado liberal e Estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um Estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um Estado não democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais. A prova histórica desta interdependência está no fato de que Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos. (4)

Entendida como o "conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos" (5), a definição mínima de democracia proposta por Bobbio impõe três condições: 1. a atribuição, a um elevado número de pessoas, de participar da tomada de decisões coletivas; 2. existência de regras de procedimento; 3. a garantia dos direitos de liberdade, que asseguram que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra.

Em O futuro da democracia, Norberto Bobbio analisa o estado dos regimes democráticos em meados da década de oitenta do séc. XX e analisa, em número de seis, as promessas não cumpridas pela democracia européia inaugurada no séc. XVIII. São elas: 1. nascimento da sociedade pluralista, em contraponto ao individualismo instituído no plano político-jurídico; 2. Revanche dos interesses; 3. Persistência das oligarquias; 4. Espaço limitado; 5. Poder invisível; 6. O cidadão não educado para a cidadania. Para ele, muitos são os obstáculos que marcam distância entre os ideais democráticos e a democracia real, entre eles o aumento do aparato burocrático, a multiplicação de reivindicações e do custo da democracia e, por fim, a ameaça da tecnocracia.

A tarefa de transpor o pensamento bobbiano para a realidade brasileira é, ao mesmo tempo, instigante e desafiadora, sob vários aspectos. A primeira delas diz respeito à formação do Estado brasileiro no séc. XIX que, como os demais países latino-americanos, se deu no "contexto não apenas da bem conhecida revolta contra a metrópole colonial, mas também do genocídio dos nativos americanos; a noção de Estado de Direito conviveu longamente com a escravidão dos negros africanos e, depois, com a discriminação racial" (6). Para Carlos Aguirre, neste contexto histórico, as prisões tiveram um papel importante, ainda que não central, na implementação dos mecanismos de dominação no período colonial.

Os mecanismos coloniais de castigo e controle social não incluíam as prisões como um se seus principais elementos. O castigo, de fato, se aplicava muito mais frequentemente por meio de vários outros mecanismos típicos das sociedades do Antigo Regime, tais como execuções públicas, marcas, açoites, trabalhos públicos e desterros. (7)

O panorama brasileiro é marcado pelo subdesenvolvimento e pelas desigualdades sociais resultantes de um passado de dependência econômica aos centros de poder do Norte desenvolvido. A principal conseqüência desse estado de desorganização e dependência estruturais é a fragilização da democracia.

Neste sentido, Florestan Fernandes demonstra a dificuldade de se superar o quadro de concentração de poder:

O Brasil se constituiu em Nação, econômica, cultural e socialmente, em condições altamente desfavoráveis à difusão de ideais democráticos de vida política. A organização da sociedade colonial e imperial pressupunha uma complicada engrenagem (...), os laços de solidariedade eram muito intensos no seio das parentelas (...) e a dominação patriarcal se inseriu em uma sociedade em que o direito de mandar e o dever de obedecer se achavam rigidamente confinados, concentrando o poder na mão de um número restrito de cabeças de parentelas" (8).

Historicamente, o Brasil adota uma cidadania excludente e, até 1888, mantivemos, no plano jurídico, institucionalizada a escravidão dos negros, sendo um dos últimos países a abolir a escravidão. Em contrapartida, pode-se observar que o círculo vicioso envolvendo baixos níveis de distribuição de renda e de acesso limitado a um sistema educacional de qualidade é, em grande medida, reflexo da formação da sociedade brasileira, que, desde os primórdios, se baseou na idéia de cordialidade definida por Sérgio Buarque de Holanda. O comportamento cordial do brasileiro fazia confundir as fronteiras das esferas 'pública' e 'privada', sempre em benefício dos mais próximos (9). Esse padrão, até os dias de hoje, atribui níveis de cidadania diferenciados aos brasileiros e, em parte, explica porquê, historicamente, a política criminal brasileira teve grande discricionariedade, buscando criminalizar a pele negra e a pobreza (10).

Neste sentido, Roberto da Matta questiona a legitimidade da noção de cidadania no Brasil, a colocar em evidência o problema fundamental da hierarquia dos indivíduos na sociedade brasileira: "o papel de cidadão e a noção política de cidadania podem ser diferentemente acoplados em sociedades diferentes e até mesmo num só sistema social. Mas o que o caso brasileiro inegavelmente revela é que a noção de cidadania sofre uma espécie de desvio, seja para baixo, seja para cima, que a impede de assumir integralmente seu significado político universalista e nivelador" (11).

No final do séc. XIX, com a proclamação da República e sob o eco das teses que sobre os 'modernos' modelos punitivos europeus e estadunidenses, pode-se dizer que "o modelo penitenciário cativou a imaginação de um grupo relativamente pequeno de autoridades do Estado na América Latina, ansiosas por imitar padrões sociais das metrópoles como uma maneira tanto de abraçar a 'modernidade' como de ensaiar mecanismos de controle 'exitosos' sobre as massas indisciplinas' (12). No Brasil, a modernidade não rompeu, mas conviveu com a escravidão, o paternalismo e o racismo. Neste panorama, o cárcere brasileiro é observado como uma continuação da senzala, servindo apenas para a produção de uma violência legitimada, mas não pelo direito iluminista. Vera Malaguti Batista observa que remonta à criação da Guarda Real da Polícia, em 1809, a imensa discricionariedade das polícias brasileiras que trabalham de acordo com uma política criminal seletiva e racista. Analisando os dados da população carcerária do Rio de Janeiro (então capital da Colônia e sede da Coroa portuguesa) apontados por Holloway, ela afirma:

Com relação aos padrões de detenção, as pesquisas de 1810 a 1821 demonstram o critério de cor. São pouquíssimos os brancos presos. No Rio de Janeiro da época (quase metade da população era negra), 80% dos julgados eram escravos, 95% nascidos na África, 19% ex-escravos e somente 1% livre. No sistema penal dirigido à escravidão, os principais motivos para a prisão eram a fuga de escravos ou pratica de capoeira. As ofensas à ordem somadas à fuga consistiam 60% das detenções e 30% por furto de roupas e alimentos. (13)

Neste sentido, Luciano Oliveira entende a atualidade da observação uma vez que "nada exemplifica melhor essa permanência do que a continuidade existente entre os castigos físicos que qualquer cidadão-do-mato aplicava antigamente aos negros fujões e as torturas (às vezes chamadas eufemisticamente de "maus-tratos") que qualquer comissário de polícia aplica ainda hoje, sem maiores consequências, a qualquer ladrão pé-de-chinelo". (14)

O modelo penitenciário brasileiro causa estranhamento, tanto em relação à teoria clássica do direito penal, uma vez que este não foi instalado para 'moldar cidadãos com direitos civis iguais aos demais', mas para reforçar os mecanismos de controle e encarceramento nas estruturas sociais vigentes, resultado da criminalização da cultura negra. Já em relação à tese defendida pela escola revisionista, os cárceres brasileiros dificilmente se enquadram na categoria de instituição total disciplinadora, já que relatórios oficiais, como aquele produzido pelo relator Especial sobre a Tortura, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, Nigel Rodley, sobre a tortura no Brasil, em 2000 (15), demonstram que, grande parte de nossas delegacias e penitenciárias, ainda funcionam segundo uma lógica absolutista do Ancien Regime, superlotadas, violentas e pobres. O princípio da less eligibility, trabalhado por Rusche e Kirchheimer, contribui para entender as razões que levam a este fenômeno no Brasil, enquanto país periférico.

A partir da década de oitenta do séc. XX, a institucionalização da democracia constitucional brasileira no final do séc. XX tem sido acompanhada de uma lenta e gradual melhoria dos indicadores sociais.

Utilizando o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH (16), criado pelas Nações Unidas, e calculado pelo PNUD em parceria com a Fundação João Pinheiro e o Ipea, fica evidente uma melhoria lenta e gradual do indicador, cujo conceito de desenvolvimento que este artigo toma por referência é aquele que transborda a sua noção econômica pura e alcança outros aspectos da organização da sociedade, tais como o seu acesso à renda, à educação, à saúde.

Apesar da necessidade de analisar com cautela séries históricas do índice de desenvolvimento humano (IDH) de um país, já que a metodologia utilizada a cada ano obedece a critérios diferentes, ela ainda assim serve de referência para identificar as tendências de mudanças na renda, na longevidade e na educação em países em desenvolvimento. Esse desempenho é o vetor resultante de acertos pontuais (e de natureza mais quantitativa do que qualitativa) de políticas públicas em face de problemas profundamente enraizados na organização excludente da sociedade brasileira.

Ano IDH
1985 0,700
1990 0,723
1995 0,753
2000 0,789
2005 0,800

Em Desigualdade e pobreza no Brasil, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, Ricardo Paes Barros analisa a estabilidade inaceitável entre a desigualdade e a pobreza no Brasil. Nos últimos vinte anos, a percentagem de pobres manteve relativa estabilidade nas últimas duas décadas, 53 milhões de pobres (17).

No que diz respeito ao índice que mede a desigualdade social - GINI - observa-se uma discreta melhora de distribuição de renda. Em 1991, o índice GINI Brasil era de 0,60, já em 2007 o índice caiu para 0,53.

Para presidente do IPEA, Márcio Pochmann, o patamar do Brasil está longe do razoável. "Todo país que tem um índice de Gini acima de 0,4 não tem uma distribuição civilizada da renda. Tínhamos, em 1990, índice de 0,6, um padrão muito primitivo. Em 2007, o Gini está em 0,53, melhorou bastante, mas ainda estamos longe de uma distribuição civilizada" (18), constata. Para ele, a tênue melhora tem várias razões: o aumento do salário mínimo, e a diminuição do salário real dos trabalhadores com empregos de maior qualidade no país, bem como políticas públicas de redistribuição de renda.

Já através do Pnad, produzido pelo IBGE, também se observam avanços no que diz respeito à condição de vida média do brasileiro, com a diminuição da taxa de analfabetismo que, 1991, era de 20,1% e no ano 2000 caiu para 13%.

3. Violência e prisão no Brasil

Os avanços dos indicadores sociais não estão sendo acompanhados por uma diminuição das tensões sociais, mas, ao contrário, dados revelam um aumento das tensões sociais. Para Luís Flávio Sapori, "as duas décadas de democracia assistiram a uma considerável deterioração da capacidade do poder público para controlar a criminalidade e a violência" (19). A taxa de homicídio era de 12 pessoas assassinadas em 100.000 habitantes em 1980. Esse número subiu para 27 em 2004. Sobre o assunto, alerta Adorno:

Os conflitos sociais tornaram-se mais acentuados. Neste contexto, a sociedade brasileira vem conhecendo crescimento das taxas de violência nas suas mais distintas modalidades: crime comum, violência fatal conectada com o crime organizado, graves violações de direitos humanos, explosão de conflitos nas relações pessoais e intersubjetivas. Em especial, a emergência do narcotráfico, promovendo a desorganização das formas tradicionais de socialidade entre as classes populares urbanas, estimulando o medo das classes médias e altas e enfraquecendo a capacidade do poder público em aplicar lei e ordem, tem grande parte de sua responsabilidade na construção do cenário de insegurança coletiva (20).

Trabalhando a relação entre democracia e violência, Angelina Peralva entende que esta relação envolve um paradoxo: o paradoxo brasileiro. Se de um lado, observa-se uma gradual melhoria dos indicadores sociais, de outro, o acirramento da relação entre a lei e a ordem, com o recrudescimento das políticas penais e o encarceramento em massa (21). Longe de ser uma exceção, o Brasil segue, a seu modo, a política penal em vigor nos Estados do Norte, vivenciando hoje os problemas decorrentes desta política.

O panorama estaduniedense é, neste sentido, paradigmático. Loïc Wacquant compreende os dados da maior população penitenciária do mundo - são mais de duas milhões de pessoas presas - através da análise das mudanças sofridas pelos Estados Unidos na imposição de 'políticas públicas'. Para ele, deu-se uma mudança de orientação política ao se consolidar, nos Estados Unidos, a política criminal da Tolerância Zero, baseada na teoria da Broken Windows, proposta por J. Wilson e G. Kelling (22).

Para Wacquant, a destruição deliberada do Estado Social e a hipertrofia súbita do Estado Penal estadunidense são dois processos concomitantes e complementares. Para ele, neste processo o cárcere tem um papel essencial, já que se traduz em severa imposição de tutela e controle. Neste sentido, afirma que:

Desenha-se a figura de um novo tipo de formação política, espécie de "Estado-centauro", dotado de uma cabeça liberal que aplica a doutrina do 'laissez-faire, laissez-passer' em relação às causas das desigualdades sociais, e de um corpo autoritário que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências dessas desigualdades (WACQUANT, 2003).

Na Europa, Emilio Santoro observa a influência da globalização e a crise do Welfare State como um quadro de referência para o estudo das novas políticas públicas. Para tanto, utiliza-se dos estudos de Zygmunt Bauman sobre a globalização para entender este progressivo enfraquecimento dos Estados modernos frente à globalização da economia e à reestruturação produtiva (23).

Neste sentido, em leitura foucaultiana, Santoro defende que as novas políticas penais são resultado de uma profunda crise de paradigma sobre o qual se baseava a relação entre o indivíduo e o Estado, na segunda metade do séc. XX, nas sociedades européias. Ele defende que, para explicar a crise da penologia das últimas décadas, é preciso analisar os processos através dos quais a ordem política se reproduz e estabiliza. As formas punitivas têm um papel fundamental, já que representam um dos processos de 'construção' do indivíduo democrático (SANTORO: 2006, p. 162).

Analisando o fenômeno na Europa, afirma que:

Estamos então diante de uma "crise histórica-política". O cárcere deixa se ser a instituição disciplinar e soube redesenhar imediatamente a sua função, adaptando-se à crise até se transformar no fundamento da ordem. O alargamento dos grandes fenômenos migratórios fez com que, nos últimos anos, a função política demandada do cárcere seja completamente alterada. Não se pede mais que o cárcere produza 'bons cidadãos' que a Justiça e comportamento se possa confiar, e proteger, que o Welfare State do qual se proclama está em declínio irreversível. A ele se pede fixar os limites da cidadania social, de criar barreiras que definam o universo dos 'cidadãos consumidores'. E o cárcere está prontamente encarregado de responder a esta demanda. (24)

Neste sentido, o fenômeno do encarceramento em massa na Europa demonstra a passagem do governo da população, que construía o 'cidadão democrático' através das instituições totais, ao governo da cidadania excludente, em que o cárcere é instrumento da ditadura democrática da classe satisfeita. Neste sentido, a ideia de democracia contrapõe-se à ideia de Estado de Direito.

Atualmente, portanto, a questão da compreensão das causas regionais de encarceramento e de incorporação do discurso estadunidense de tolerância zero se faz necessária para desvendar as razões do encarceramento em massa no Brasil globalizado, tendo em vista a advertência de Loïc Wacquant, quando nota introdutória aos leitores brasileiros de Prisões da Miséria de que a implementação desta política de tolerância zero em países de tradição democrática frágil é perigosa, uma vez que pode gerar um fenômeno particular: que estes países, como é o caso do Brasil, deixem as ditaduras militares que marcaram o período do pós-guerra e permitam a introdução de uma nova ditadura, desta vez, contra os pobres.

Como sugere Fernando Lessa, a partir da década de noventa, modificou-se de tal forma o perfil do preso e da violência nos cárceres brasileiros que "nos últimos dez anos, têm sido comuns as rebeliões nas prisões brasileiras que deixam um sangrento rastro de mortes entre os presos", denunciam as condições desumanas de encarceramento, mas também revelam uma baixa capacidade do Estado em controlar a dinâmica prisional.

(...) o acentuado incremento da população encarcerada no Brasil na década de 1990 e particularmente um vertiginoso aumento no início dos anos 2000. Isto trouxe o agravamento das condições de vida nas prisões, e seus principais componentes são: a superlotação de muitos estabelecimentos, a manutenção de práticas de torturas e maus tratos, a eclosão de rebeliões, a exigüidade dos serviços prisionais (alimentação, asseio e higiene pessoais, vestuário, assistência jurídica, programas de reabilitação, etc.), além da presença cada vez mais intensa de grupos criminosos no interior das prisões (Adorno, 1991 e Salla, 2001). (25)

No primeiro semestre de 2009 (26), dos 469.546 mil presos, temos 42% de presos provisórios sobre os quais o sistema não disponibiliza informação sobre o tipo de crime. Dos 58% de presos que cumprem pena no sistema penitenciário brasileiro (estadual e federal), tem-se que apenas 12,5% dos presos são apenados por crime contra a pessoa, enquanto que 52% deles estão ali por crime contra o patrimônio, dos quais 30% por furto (simples ou qualificado). Apenados pelo art. 12 da antiga lei de tóxicos, a lei 6.368/76 e pelo art. 33 da Lei 11.343/06 em vigor, que disciplina o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, são mais de 21% dos presos.

Na transição da ditadura para a ''democracia' (1978-1988), com o deslocamento do inimigo interno para o criminoso comum, e com o auxílio luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta a estrutura de controle social, com mais e mais investimentos na 'luta contra o crime'. E, o que é pior, com as campanhas maciças de pânico social, permitiu-se um avanço sem precedentes na internacionalização do autoritarismo (...) o 'mito da droga' se estabelece nesse período de transição da ditadura, a partir dos anos setenta. Há uma determinação estrutural regulada por leis de oferta e de demanda concomitante a uma carga ideológica e emocional disseminada pela mídia e acolhida pelo imaginário social a partir de uma estratégia dos países capitalistas centrais. (27)

Obviamente que esta questão é central na medida em que constitui a chave de compreensão da dinâmica - e por que não dizer na função? - do sistema prisional brasileiro. Tomando como ponto de referência apenas população penitenciária feminina no primeiro trimestre de 2009, observa-se um dado que merece estudo aprofundado, mas que demarca a relação existente entre o fenômeno do encarceramento em massa e a política brasileira de criminalização do tráfico de drogas: do universo de pouco mais de 24.068 mulheres presas (incluídas aí as presas provisórias), 11.629 delas estão presas por tráfico de drogas (28).

Cruzando os dados que dizem respeito à tipologia dos crimes da população penitenciária e a classificação dos presos brasileiros em função do grau de instrução, observa-se que 7% são analfabetos, 12% são caracterizados como 'alfabetizados', 45% têm ensino fundamental incompleto e apenas 11% têm ensino fundamental completo. Somando estes valores, tem-se que 77% da população penitenciária brasileira tem até o ensino fundamental completo, o que demonstra claramente que a prisão continua a funcionar como um instrumento de contenção da pobreza.

Analisando historicamente a legislação brasileira sobre drogas, Salo de Carvalho critica o uso abusivo, por parte dos legisladores, de normas penais em branco que legitimam a arbitrariedade e a violação sistemática de direitos humanos (29). O art. 12 da lei federal 6.368/76 criminalizava o tráfico de drogas:

Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa.

Analisando a relação entre 'o mito das drogas' e a juventude pobre no Rio de Janeiro, Vera Malaguti observa que, a partir da década de setenta, "a disseminação do uso da cocaína trouxe como contrapartida o recrutamento da mão-de-obra jovem para a sua venda ilegal" e, de outro lado, aplicou-se "aos jovens de classe média que a consumiam o esteriótipo médico, e aos jovens pobres que a comercializavam o esteriótipo criminal" (30). Para ela, a superlotação do sistema de atendimento aos adolescentes infratores no Rio de Janeiro deve-se, em grande medida, à "visão seletiva do sistema penal para adolescentes infratores e a diferenciação no tratamento dado aos jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas (...) permite dizer que o problema do sistema não é a droga em si, mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada perigosa" (31).

Com a publicação da Lei 11.434/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas sobre as Drogas, manteve-se a tipificação o tráfico de drogas (art. 33) e, com o art. 45, veio a inovação.

Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.

O legislador não descriminalizou, mas isentou de pena de prisão o dependente químico, ou aquele que, sob o efeito da droga, pratica infração penal, sendo inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento. Entretanto, nos demais artigos, a lei mantém a linha dura de enfrentamento do tráfico de drogas no Brasil, impulsionando a economia da droga e potencializando a violência urbana e o processo de encarceramento em massa, tendo em vista a precária eficácia que tem a ferramenta do direito penal para reprimir atividades lucrativas, como foi o caso da criminalização da bebida alcóolica, nos Estados Unidos, na década de vinte, apenas para citar um exemplo.

Embora extrapole os objetivos deste artigo, já que exigiria um estudo de campo para tanto, é importante analisar as razões implícitas nos discursos judicias que justificam a arbitrariedade dos agentes do sistema judicial quando da tipificação da conduta, como o fez Vera Malaguti, bem como a análise da íntima relação entre o bilionário mercado das drogas ilícitas e do não menos lucrativo mercado das armas de fogo. Este ensaio se contenta com a análise dos dados oficiais do Ministério da Justiça sobre a população penitenciária, na medida em que evidenciam as razões 'ocultas' que justificam o 'tabu' em torno da necessária discussão sobre a política criminal, o cárcere e o que se quer significar quando se fala em democracia no Brasil.

4. Conclusões

Se são muitos os desafios que se apresentam à democracia brasileira, e em vários níveis de complexidade, certamente um deles diz respeito à questão da gestão do sistema prisional e da relação entre o cárcere e a democracia.

Se, historicamente, o Brasil nasce como um Estado fraco e dependente dos Estados do Norte, e marcado pela desigualdade social que, quinhentos anos depois, continua a determinar a identidade do Brasil como um dos países mais desiguais do mundo, com altos padrões de concentração de renda, os estudos realizados sobre o cárcere e a globalização sugerem uma mudança no papel do cárcere na sociedade brasileira.

Nos últimos vinte anos, observa-se que a implementação de uma política criminal voltada para a criminalização da droga, quase que sob o argumento de uma "guerra à droga", utilizado como justificativa para o encarceramento em massa, modificou significativamente a composição da população penitenciária, e potencializou a violência urbana, acirrando significativamente a relação entre direito e ordem. Como pano de fundo da reflexão está a grande questão em torno do tráfico de drogas ilícitas e de armas de fogo. A questão é saber como melhor lidar com o bilionário mundo das drogas ilícitas, quase sempre aliado ao vultuoso mercado de armas de fogo, e qual a razão - e principalmente as consequências - de se utilizar da ferramenta do direito penal como mecanismo de combate.

Neste sentido, a sua maneira, o Brasil adotou a política de tolerância zero, relacionada a uma continuidade da criminalização da pobreza, adicionada a uma política penal de criminalização do tráfico de drogas, que em grande parte explica o fenômeno da violência urbana e das taxas de homicídio no Brasil, uma vez que Estado não tem uma agenda de políticas públicas estruturada pela vontade geral, mas sim pelos interesses dos grupos de apoio ao governo estabelecido, buscam-se soluções setoriais e focadas nos desarranjos mais evidentes na sociedade, com o custo menor possível, dentre os quais o combate ao crime.

Neste cenário, o estudo acerca do papel do cárcere na sociedade brasileira exige uma reflexão acerca do paradigma da democracia e do Estado de Direito aplicadas à realidade de um país periférico, tradicionalmente frágil frente ao capital internacional, muito antes do que Bauman convencionou chamar de 'enfraquecimento do Estado'. O estudo acerca do fenômeno do encarceramento em massa hoje pode ajudar a elucidar o que Peralva chama de 'paradoxo brasileiro'. A questão repousa, para utilizar as lições de Alessandro Baratta, sobre a necessidade de consolidação de uma política integral de direitos humanos, ou seja, a uma releitura das necessidades e de todas as emergências, através do sistema dos direitos fundamentais e da arquitetura normativa da Constituição, não se tratando, portanto, de redesenhar o direito penal na Constituição, mas sim redefinir a política segundo um desenho constitucional, como política de realização dos direitos.


Notas

1. Fonte: Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN.

2. N. BOBBIO, Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política, 3 ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 135.

3. D. ZOLO, "Teoria e crítica do Estado de Direito", in P. COSTA, D. ZOLO (orgs.), O Estado de Direito: história, teoria, crítica, São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 05.

4. N. BOBBIO, O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 20.

5. N. BOBBIO, op. cit. ult., p. 18.

6. D. ZOLO, "Teoria e crítica do Estado de Direito", cit.

7. C. AGUIRRE, "Castigo e Prisões: da era colonial aos novos Estados-Nação", in História das prisões no Brasil, vol. 1, Rio de Janeiro, Rocco, 2009, p. 38.

8. F. FERNANDES, Mudanças Sociais no Brasil, 3.ed. São Paulo, Difel, 1979, p. 99.

9. S.B. HOLANDA, Raízes do Brasil, 26 ed., São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

10. Sobre o assunto, ver V.M. BATISTA, O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, Rio de Janeiro, Revan, 2003; S. ADORNO, "Insegurança versus direitos humanos: entre a lei e a ordem. Tempo Social", in Revista de Sociologia da USP, 11 (2000), 2, pp. 129-153.

11. R. MATTA, A casa & a rua: espaço, cidadania, morte e mulher no Brasil, 5 ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1997. pp. 75-76.

12. C. AGUIRRE, "Castigo e Prisões: da era colonial aos novos Estados-Nação", cit., p. 40.

13. V.M. BATISTA, O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história partida, cit., p. 142.

14. L. OLIVEIRA, Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura, São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 10.

15. Relatório em Missão, 20/8 a 12/9/2000 E/CN.4/2001/66/Add 2.

16. O IDH compreende três faixas de desenvolvimento. Abaixo de 0,50, o IDH indica países com baixo grau de desenvolvimento humano. Entre 0,50 e 0,79, o IDH indica os países de médio de desenvolvimento humano. Acima de 0,80, o IDH indica países com alto grau de desenvolvimento humano.

17. É importante ressaltar que as estatísticas de pobreza nem sempre são comparáveis, pois parâmetros utilizados para definir se um indivíduo é ou não pobre podem ser diferentes.

18. "Também sou favorável a reduzir o gasto público, mas o gasto com juros", diz o presidente do Ipea, 2008.

19. L.F. SAPORI, Segurança pública no Brasil: desafios e perspectivas, Rio de Janeiro, FGV, 2007, p. 98.

20. S. ADORNO, "Exclusão socioeconômica e violência urbana", in Sociologias, (2002), 8.

21. A. PERALVA, Democracia e violência: o paradoxo brasileiro, São Paulo, Paz e Terra, 2002.

22. L. WACQUANT, "A ascensão do Estado penal nos EUA", in Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, 7 (2003), 11.

23. E. SANTORO, Carcere e società liberale, 2 ed., Torino, Giappichelli, 2004.

24. E. SANTORO, "Políticas penais 'democráticas' e respeito aos direitos humanos: o cárcere como instrumento de ditadura da classe privilegiada", in Verba Juris: Anuário da Pós-Graduação em Direito, 5 (2006), 5, 2006, p. 191.

25. F. SALLA, "As rebeliões nas prisões: novos significados a partir da experiência brasileira", in Sociologias. 8 (2006), 16.

26. Fonte: Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN.

27. V.M. BATISTA, Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 134.

28. Fonte: Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN.

29. S. CARVALHO, in V.M. BATISTA, Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, cit., p. 83.

30. Idem, p. 134.

31. Ibidem.